terça-feira, 2 de março de 2010

Sugestão de Leitura

A PRÁTICA DA CRIAÇÃO E A APRECIAÇÃO MUSICAL COM ADULTOS: RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA.

Bernadete Zagonel

Durante alguns anos ministrei as disciplinas de Apreciação Musical para alunos de Licenciatura em Música na Escola de Música e Belas Artes do Paraná. A experiência me mostrou que, a cada vez que desenvolvíamos um estudo baseado na criação, a apreensão dos conceitos se fazia de maneira mais eficaz. Resolvi, então, fazer um estudo comparativo sobre essa questão, observando mais de perto e anotando os resultados de cada tipo de abordagem metodológica, para em seguida proceder a uma análise, mesmo que parcial, dos dados obtidos. Não tenho a pretensão de generalizar esses resultados, pois tratou-se de um estudo limitado a dois grupos pequenos de alunos, mas acredito terem sido revelados indícios concretos sobre a importância da prática da
composição para a aprendizagem musical.
Elaborei assim um programa de aulas, no decorrer do ano de 1997, com duas turmas de alunos bastante distintas: no primeiro semestre com uma classe do Curso de Licenciatura da Escola de Música da Universidade Federal da Bahia, e no segundo com uma classe do Curso de Educação Artística da Universidade Federal do Paraná. É importante ressaltar que em ambos os grupos havia alunos com um conhecimento prévio de música, e outros totalmente iniciantes, da seguinte maneira: no da UFBA, metade dos alunos freqüentava o curso de Licenciatura em Música, e a outra metade era composta por alunos de áreas diversas interessados no aprendizado musical. No grupo da UFPR, havia alunos cuja opção de estudo específico era música e também outros das áreas de desenho e pintura.

Ambas as turmas contaram com uma carga horária de 30 hs./aulas. O grupo da UFBA era formado por 16 alunos, e o da UFPR por 21. Não foi possível ter o mesmo número de estudantes nas duas turmas por razões administrativas de cada Universidade, uma vez que esses não foram grupos formados especialmente para esta investigação, mas eram turmas regulares dos cursos em questão.

Os objetivos principais deste estudo comparativo foram observar:
1. Em que medida esses alunos melhoram a capacidade de compreensão da música a partir da apreciação e análise pela audição de obras do repertório clássico.
2. Até que ponto o acréscimo de uma prática de criação (composição) melhora ou aumenta essa capacidade de compreensão.

Os conteúdos musicais abordados foram os seguintes:
• Forma: no sentido da estrutura da obra e reconhecimento de algumas formas simples: AB, ABA, ABACADA e reconhecimento de temas e motivos.
Pretendeu-se que o aluno fosse capaz de apontar qual a forma de uma obra simples após duas ou três audições, reconhecendo o tema principal, as repetições e variações, para compreender de que maneira a peça estaria estruturada.
• Instrumentos: foram trabalhados alguns instrumentos da orquestra, pedindo-se o reconhecimento, pela audição, do timbre dos principais deles.
• Métrica: reconhecimento de compassos binários, ternários ou quaternários.
• Estilos de épocas: não se pretendia, evidentemente, que em tão pouco tempo os alunos conseguissem distinguir as estéticas de todas as épocas da história da música ocidental. Teve-se a intenção apenas de dar-lhes uma noção dos estilos musicais mais marcantes e característicos de algumas épocas para que, mesmo pela intuição, o indivíduo fosse capaz de reconhecer se uma obra pertence ao período barroco, romântico ou contemporâneo, p. ex.
• Andamento e caráter expressivo: foram vistos alguns termos utilizados para determinar os andamentos, e também foi discutido que tipo de expressão e sentimento uma música pode sugerir.

Na turma da Escola de Música da UFBA (Grupo A) desenvolveu-se apenas o trabalho de apreciação, pela audição, das obras selecionadas, e na da UFPR (Grupo B) também foram feitas práticas de composição coletiva em sala de aula, usando-se sempre os mesmos conteúdos musicais.
Foi selecionado o seguinte repertório para a turma que só trabalhou com a apreciação pela audição de obras: Pedro e o Lobo, de Prokofief, O Carnaval dos Animais, de Saint-Saens, As quatro estações, de Vivaldi (Primavera e Inverno), Bolero, de Ravel, Sequenza III, de Berio.
A escolha destas obras se deu porque são todas músicas de curta duração e de estrutura relativamente simples e, conseqüentemente, de fácil compreensão. Da mesma forma elas proporcionam uma audição clara (em alguns casos quase individualizada) dos timbres dos diversos instrumentos. No caso do Carnaval dos Animais e das Quatro Estações, cada peça foi trabalhada detalhadamente, usando-se várias aulas para se apreciar a totalidade da obra.
Para se guardar a mesma carga horária, foram retiradas algumas obras do programa de uma das turmas. Desse modo, para a classe que fez também a prática de criação foram apreciadas apenas as obras de Prokofief, Berio, algumas peças do Carnaval dos Animais de Saint-Saens e o Concerto Primavera de Vivaldi.
A parte de criação foi toda desenvolvida em sala de aula, e em grupo.
A cada vez eram escolhidos alguns elementos musicais com os quais os grupos deveriam trabalhar de maneira livre. Não se fazia restrição quanto ao tipo de material sonoro, podendo se utilizar tanto notas musicais quanto sons e ruídos os mais diversos. Assim também se deixou livre a escolha dos materiais sonoros tendo sido empregados, na maioria das vezes, sons vocais e alguns objetos sonoros, devido à falta de instrumentos disponíveis.
Os grupos recebiam como proposta criar uma seqüência musical enfatizando um elemento musical em particular, dentro daqueles selecionados e já descritos anteriormente. Por exemplo: contrastes entre sons longos e curtos, ou entre caráter rítmico e melódico; organização da seqüência dentro de uma forma pré-determinada; e outras mais. Este funcionava como apoio e ponto de partida para a composição. Depois de criadas e executadas para apreciação dos colegas, havia um momento para discussão, onde eram detectados os elementos musicais principais trabalhados em cada seqüência. Nesse momento, a equipe criadora também falava de seu processo de criação e de suas intenções estéticas e expressivas, e os ouvintes falavam de suas impressões e percepções.
Apesar de se pretender sempre o treino da apreciação pela audição somente, nestes exercícios de criação se estimulou a feitura de partituras escritas, para dar apoio e auxiliar na estruturação da composição. As partituras eram inventadas pelos grupos, e depois expostas na sala para que todos os demais pudessem lê-las e compreendê-las.
Para a análise dos dados, foi utilizado o sistema de teste-controle, aplicado no início e no fim da pesquisa. Assim, no primeiro dia de aula, aplicou-se o teste para medir a compreensão dos alunos após a audição de duas obras diferentes: Prelúdio da ópera Carmen de Bizet, e o 3° Movimento do Concerto para Trompa de Mozart. Terminado o semestre, aplicou-se novamente o mesmo teste, com as obras ouvidas na primeira vez. No questionário havia questões abordando: forma, temas e motivos, timbre dos instrumentos da orquestra, métrica, estilos de épocas, andamento, caráter expressivo e textura.
O procedimento foi o seguinte: as obras foram ouvidas três vezes.
Logo após o final das audições de cada uma os alunos responderam às questões constantes no teste. As questões foram mais de ordem de percepção do que de conhecimento, embora este pudesse auxiliar na compreensão da música ouvida.

Resultados:
Foi possível constatar que: 1. os alunos mostraram melhora na capacidade de compreensão dos conteúdos selecionados após o trabalho de percepção musical pela audição. 2. a turma que desenvolveu a prática da criação junto com a apreciação musical de obras do repertório clássico (Grupo B) mostrou aproveitamento superior à que apenas fez apreciação pela audição (Grupo A).

No Grupo A houve um aumento na média dos testes na ordem de menos de um ponto (0,55). Já no Grupo B houve uma melhora de quase dois pontos (1,95). Pôde-se observar igualmente que o item onde houve maior índice de acertos no pós-teste foi o referente à forma.
O que se pode deduzir com esta pequena investigação é que, quando o aluno tem a possibilidade de manipular os conceitos musicais por meio da prática da composição, estes são apreendidos com eficiência e mais profundamente. Já nos métodos ativos se pregava a importância da participação do estudante e do “fazer” para a melhor compreensão da música. Ao trabalhar com a música de maneira livre e criativa o indivíduo estabelece laços mais próximos com os códigos com os quais está agindo e interagindo, e tem condições de se apropriar da linguagem. Sua curiosidade é naturalmente aguçada, e ele parte em busca do conhecimento de novos elementos na tentativa de solucionar problemas ou concretizar idéias. Este procedimento lhe impulsiona a ir além, a compreender melhor o funcionamento da música como um todo, seus diálogos, sua estrutura, suas articulações, as possibilidades de materiais sonoros. Pouco adianta se fazer pesquisa de sons a partir de objetos (prática, aliás, bastante divulgada ultimamente), se não se chega ao fazer musical, onde estes elementos tomam
vida.

O fato de se ter trabalhado com os elementos musicais na composição fez com que eles fossem rapidamente identificados quando da audição de uma obra, dando-se assim o processo de transferência dos conteúdos aprendidos. É a sensação do “já conhecido” e da familiarização.
Isto aconteceu não somente com relação às obras que se enquadram na estética da tonalidade, como também com o exemplo musical contemporâneo, onde os pontos de referência são diferentes. Não se detectou dificuldade de compreensão ou de aceitação por parte dos estudantes ao ouvir a peça de Berio, pois os elementos antes usados nas seqüências produzidas por eles foram rapidamente identificados.
Além disto fica claro o prazer que confere ao aluno a sensação de ver o trabalho por ele imaginado e criado ser concretizado e apresentado ao público.
Ao mesmo tempo foi possível observar como o trabalho de criação em grupo disciplina, socializa e ensina. O respeito pelo outro, o saber ouvir, criticar e aceitar idéias alheias foram comportamentos visivelmente desenvolvidos durante o processo de criação.


Artigo publicado em:
Anais do VI Encontro da ABEM, Recife, 1998.