sexta-feira, 5 de junho de 2009

Mulher é desdobrável. Eu sou.

Recife, 2009, talvez um divisor de águas na minha vida profissional (e por que não dizer pessoal?!). Chamo-o de divisor porque jamais havia pensando na possibilidade de trabalhar com a formação de professores, ainda que já tenha dado aulas a alunos da graduação em cursos de educação à distância. Hoje, divido-me entre a formação dos professores da prefeitura de Olinda (PMO) e as minhas turmas de 8º ano da Escola Izaulina de Castro, também da PMO.
2008 foi ano em que a minha vida profissional deu uma reviravolta: a escola em que nos últimos 10 anos havia trabalhado, na Prefeitura, estava sendo reconstruída e eu, assim como muitos colegas, tive de “me localizar” em duas (!) outras unidades de ensino, em que desenvolveria um projeto O Cinema Brasileiro vai à aula de Língua Portuguesa, com alunos do 6º ao 9º ano da Escola Izaulina, em que trabalhamos curtas-metragens, premiados ou não, com temáticas diversas, o que me fez escrever acerca da condição da mulher na sociedade contemporânea a partir do curta Red, de Flávio Frederico, adaptado do conto Red Lipstick, a pequena ninfática, de Rodrigo Penteado, ambos uma releitura de Chapeuzinho Vermelho, e apresentá-lo no XI Congresso Internacional da ABRALIC (Associação Associação Brasileira de Literatura Comparada); havia, também, as aulas com os alunos da EJA (Educação de Jovens e Adultos) da Escola Dom Azeredo Coutinho.
O que parecia ser, inicialmente, uma oportunidade de conhecer novos colegas e alunos - eu ainda não havia tido o prazer de trabalhar com alunos da EJA - tornou-se um ano de peregrinações: primeiro porque o Azeredo não necessitava de fato de uma outra professora de EJA, e como já era esperado, com a entrega das (famigeradas) carteiras de estudantes, os alunos trabalhadores deixavam de frequentar as aulas. Para encurtar a história, eu era a professora “novata” e, portanto, deveria procurar uma outra unidade de ensino. Estávamos no mês de setembro!
Conquistar uma nova turma faltando apenas dois meses para o término do ano letivo era o meu maior desafio. Decidi que não teria tempo pra lamentações, era preciso agir, pois os desafios eram muitos em uma turma de mais ou menos quinze alunos, entre 15 e 67 anos, cuja maioria apenas copiava do quadro e não produzia sequer um texto oral quer seja por não saber como fazê-lo, quer seja por não se acreditar capaz. A leitura diária de textos diversos, sensíveis e divertidos foi uma decisão acertada e, quando terminava uma dessas leituras pedia-lhes que agora eles fossem os narradores e que nos contassem também as suas histórias que seriam não só registradas no papel, mas também em minha câmera, para posterior divulgação na (nova) Escola Antônio Correia, onde eles tinham estado há alguns anos, e que haviam retornado há menos de dois anos.
Apesar de reticentes, a visão dos textos que produziram (e corrigiram), adaptados a uma situação mais formal de comunicação e dispostos na Feira de Conhecimentos da escola em que estudavam, mexeu com a sua auto-estima a ponto de eu “perder”, as fotos que havia tirado. Todos queriam a lembrança daquele evento. Naquele momento, eu tive a certeza do dever cumprido, por isso, quando fui indicada para participar do programa Gestar II como professora formadora, não hesitei em “abandoná-los” na primeira semana de dezembro, deixando o meu, ainda, incipiente trabalho, e juntar-me ao grupo de professores formadores municipais do estado de Pernambuco.
É preciso abrir um parêntese e dizer que os alunos da EJA não foram os únicos a “serem abandonados”, deixei também as minhas turmas do 3º ano do Ensino Médio do Colégio da Polícia Militar com a promessa de que deveria repor as aulas na semana seguinte. Apesar de toda essa correria, eu ainda “andava às voltas” com os últimos detalhes para publicação de meu livro (Dissertação de Mestrado): SHREK: Do conto ao filme, um “reino” não tão distante. Talvez, esses não sejam, ainda, argumentos que justifiquem a escolha do título deste esboço de memorial; vejamos, então, o que eu posso fazer a esse respeito. Não espere, contudo, uma rigidez na adequação temporal dos verbos, pois parte destas memórias já haviam sido escritas...
Mulher é desdobrável. Eu sou.
Último verso do poema-paródia “Com licença poética”, de Adélia Prado, arrebatou-me numa tarde de quinta-feira do 2º Semestre de 2005, nas aulas de Teoria do Texto Poético. O “arrebatamento”, contudo, nada tem de discurso feminista; na verdade, a idéia de desdobrar-me, dividir-me em duas, tem me fascinado, agora mais que nunca. Explico: fui aluna do Mestrado em Letras (UFPB) e professora do Colégio da Polícia Militar (CPM-PE) – obtive a licença para estudar apenas na rede municipal de Olinda -, e conciliar ambas as atividades foi, sem dúvida, uma tarefa em que trabalho e prazer deram o tom da aprendizagem.
Tudo começou com o (a) desejo/necessidade de ingressar na Pós-Graduação. Em dezembro de 2004, assisti ao Seminário oferecido pela Pós em Letras a fim de saber um pouco mais sobre a linha de pesquisa “Leituras do texto literário”. Eufórica, não entendi a ementa e achei que seria um ótimo caminho para analisar as crônicas produzidas por meus alunos da escola pública e da particular; na época, eram três livros num total de 36 textos. Alertada sobre o que seriam “as leituras”, disse, na bucha, à minha futura orientadora, Genilda Azerêdo, que havia um filme (desenho animado) que poderia render um trabalho interessante.
O que eu não falei é que desconhecia a existência de um texto verbal que gerou a adaptação... Isso era uma quinta–feira, e, ela (a orientadora) e eu poderíamos conversar melhor sobre a minha idéia, na segunda-feira seguinte. O filme era Shrek 2 (2004), recém saído “do forno”; Shrek! (1990) foi o texto literário que o inspirou, mas essa informação só aparecia nos créditos finais da animação. Encantava-me a idéia de um conto de fadas que falava tanto para mim quanto para uma criança de 6 anos de idade. Há quase dois anos, a (re-) leitura da história do ogro me causa um estranho encantamento. Não se trata de saudosismo da infância. É uma narrativa para todas as idades, uma vez que lida com a existência humana. Tanto a leitura do livro, como a do filme, permite ao leitor mais atento mergulhar na fantasia do Era uma vez, sem “torcer o nariz”, e ir além do lúdico. Há cinco anos, quando foi lançado o primeiro filme Shrek (2001), a história do ogro vinha me encantando e perturbando com a mesma intensidade.
Marina Colasanti diz algo maravilhoso sobre o fato de o conto de fadas perturbar, encantar e desdobrar-se (!). Em sua crônica “E as fadas foram parar no quarto das crianças” , ela afirma que
Entender a perturbação só é possível se tomarmos uma fada pela mão e, com ela, atravessarmos a ponte. Como num encantamento, descobriremos então o outro lado da história, aquele que não aparece aos ouvintes desatentos, aquele que se estende além dos aparentes limites da história e que, como um biombo, se desdobra e se abre em refração infinita (2004, p. 222-223).

Estudar a relação entre a Literatura e o Cinema, através do viés da adaptação, possibilitou-me unir a prática à teoria, o que foi um avanço nas minhas aulas de Língua Portuguesa. As discussões acerca do texto literário e do fílmico com os professores e colegas da Pós-Graduação me estimularam a estender o debate às turmas de 8ª série e do 1º ano do Ensino Médio. Estas adaptaram algumas de suas crônicas publicadas no livro Cronista, eu!?! – vol. 2 (2005), organizado por mim. O passo seguinte foi a roteirização dos textos e uma oficina de pré-produção de curta-metragem ministrada por Geyzon Dantas (Zonda), que também é aluno do Mestrado. O resultado desse trabalho foi exibido no Cine Fest Motivo, em novembro de 2005. Entusiasmados com o resultado do evento, alunos, professores e direção da instituição mantiveram o projeto que já conta com uma outra oficina, a de edição. Contudo, a minha participação tem sido a de espectadora, pois o ano de 2006 me reservara a escritura da Dissertação e o desejo de começar um novo tempo no sisudo Colégio da Polícia.
Um pouco mais “antenada” com a Literatura e o Cinema, propus aos alunos da 8ª série do CPM que escolhessem entre os contos de autores brasileiros e estrangeiros aqueles que gostariam de ver transpostos para a linguagem do audiovisual. Na lista, constavam Ana Maria Machado, Ana Miranda, Carlos Drummond, Fernando Sabino, La Fontaine, Oscar Wilde, dentre outros. Orientá-los na construção do roteiro ajudou-me a perceber que elementos eu poderia levar em consideração ao analisar o meu próprio objeto de estudo. Em 2005, a fim de auxiliar o meu trabalho como aluna-pesquisadora e professora, participei de uma “Oficina Básica de Produção Audiovisual” oferecida pela ABD/PB (Associação Brasileira de Documentaristas da Paraíba) e, em 2006, do minicurso “Exercícios e Análise Fílmica – Caminhos Estéticos de Cinema Contemporâneo”, ministrado pelo Prof. Dr. Alexandre Figueirôa, na Unicap (Universidade Católica de Pernambuco), bem como da disciplina, como aluna ouvinte, “Textualidade literária e artística: a intersemiose”, ministrada pela Profª Dra. Maria do Carmo Nino (UFPE), que veio a escrever o Prefácio do agora livro.
Certa das dificuldades que me aguardavam na execução desse projeto numa escola pública, convidei uma amiga, Kátia Simone Santos, professora de Desenho Geométrico e parceira em outros trabalhos – são dela as capas dos livros Primeiras Crônicas (2002), Primeiras Crônicas, Vol. II (2004) e O chiclete e outras primeiras crônicas, este último em fase de edição – para participar dessa empreitada. Juntas, conquistamos outros parceiros, dentre eles, os integrantes da Banda do CPM que se ofereceram para criar uma trilha sonora para os curtas-metragens. Vale dizer que a Coordenação de Ensino e a Direção do CPM foram os nossos últimos parceiros. O projeto contou também com uma oficina de pré-produção e outra de edição para que os alunos, e demais envolvidos, se familiarizassem com a linguagem cinematográfica; assim como a criação de um (tímido) cineclube a fim de aproximá-los do cinema não-americano. O resultado desse trabalho pode ser conferido no Curta o conto – 1º Festival de Literatura e Cinema, que ocorreu em novembro daquele ano.
No meio disso tudo, havia um rival: a falta de hábito de ler textos teóricos. Embora fossem textos que não possuíam a opacidade da poesia, em alguns deles, como sugere Drummond em seu a Procura da Poesia, quis/ precisei chegar mais perto, contemplar as palavras e desejei, sinceramente, ter trazido a chave. Nesse sentido, é inegável a importância das disciplinas cursadas no Mestrado não só como suporte para minha pesquisa, mas também como um “quebrar as amarras” à Academia. O resultado já aparece no aproveitamento das disciplinas cursadas e no artigo “BRASIL REAL X BRASIL OFICIAL: o combate no “Romance da Filha do Imperador do Brasil”” publicado nos Anais do II Colóquio Internacional de Políticas e Práticas Curriculares: Impasses, Tendências e Perspectivas (2005), realizado pelo Centro de Educação da UFPB.
Dizer que não assisto mais a filmes da mesma maneira pode soar lugar comum, mas tal exercício tem sido fundamental na minha prática em sala de aula. Por exemplo, discutir Corra, Lola, corra (1998), de Tom Tykwer, nas aulas de Literatura e Cinema da Pós-Graduação é algo natural, mas não para uma turma de adolescentes acostumados à Malhação e, como eu mesma fui, ao cinema de Hollywood.
Nos primeiros seis meses do Mestrado, confesso que meu projeto de pesquisa, algumas vezes, parecia-me o buraco negro de onde Shrek saiu ou o reino Tão Tão Distante ao qual ele não pertencia. Nesse momento, o incentivo da família, dos amigos, dos professores e, principalmente, da orientadora foi fundamental. Além do mais, no final de cada trabalho apresentado, impossível não lembrar a frase que para mim e outros colegas de curso tornou-se um mantra e foi “recolhida” nas aulas de Metodologia da Pesquisa: “Calma, pessoal. No final vai dar tudo certo”, dizia Diógenes Maciel. Ele parecia estar certo...
Quando ainda era uma adolescente e as minhas certezas eram bem poucas, comecei o curso de Letras na Fundação de Ensino Superior de Olinda (FUNESO). A idéia de me tornar professora não tinha sido bem vinda à época do Magistério, o que se refletiu no início da minha vida profissional. Por quatro anos, acumulei os cargos de professora de uma escola pública da rede municipal de Olinda e de agente administrativo no Ministério da Aeronáutica, trabalhando no setor de Licitações. Ser professora havia sido sugestão de minha mãe uma vez que, sem outras perspectivas aos 14 anos, a idéia de fazer o então Científico não me atraía. Estranhamente (talvez o correto fosse dizer ironicamente), quando eu tinha 12 anos de idade e tentava entender Dom Casmurro, ela me disse: “Minina, pára de ler. Vai estudar!” Ao longo desses anos, em alguns momentos eu lhe (des-) obedeci.
Não pense o leitor (sempre quis dizer ou escrever isso) que naquela idade meus autores eram todos canônicos. As revistinhas em quadrinhos, os chamados romances sentimentais (Júlia, Sabrina e Bianca), as parábolas bíblicas, as fotonovelas (ainda existem?) e, claro, os contos de fadas também figuravam em baixo de meu colchão. Os últimos, na falta de uma TV que exibisse os clássicos adaptados pela Walt Disney, chegavam a mim, também, através da (adorável) Coleção Disquinhos. Na verdade, atribuo o meu primeiro contato com os contos de fadas a uma tia-fiandeira que fazia questão de contar a mim e às outras crianças da vizinhança as histórias de Trancoso sempre que faltava “luz” na rua onde eu morava; a CELPE (Companhia Energética de Pernambuco), sem querer, dava sempre uma mãozinha para que isso fosse possível.

Capinheiro do meu pai
não me corte os meus cabelos
minha mãe me penteou
minha madrasta me enterrou
pelo figo da figueira
que o passarinho bicou.


Não foram poucas as vezes que ouvi tal melodia, antecipando o desfecho da narrativa e reclamando quando a minha Mamãe Gansa não era “fiel” ao enredo. Hoje, tenho a sensação de que os apagões constantes favoreciam a atmosfera da nossa “sala de cinema” e que, talvez, já estivesse começando ali o meu namoro com o verbo e a imagem. O Happy End dessa e de muitas outras histórias era acrescido de um E passou por uma perna de pinto e por uma perna de pato, quem quiser que conte vinte e quatro... Vinte e quatro é o número de meses que possui o Mestrado; restavam, contudo, pouco mais de seis meses para o seu término. Até lá, tinha leituras a fazer, capítulos a redigir, lançamento de livros que havia organizado, aulas a serem dadas... Espero que esse breve relato tenha justificado minha escolha pelo título-premissa: Mulher é desdobrável. Eu sou.

2 comentários:

  1. UFA! que texto enorme (juro que li tudinho!).

    Mais que desdobrável,partida em mil pedaços para conseguir da conta de tudo isso.
    E valeu apena,aposto (e vejo que sim).

    Quando a gente faz/estuda o que realmente gosta,a obrigação de certo modo passa a ser prazerosa,apesar do cansaço (imagino que tenha sido) mais mediante a tudo isso,é foda trabalhar na area de ensino! (falo isso de maneira positiva ok?!).

    Temo em dizer que optei por Letras/Lic (risos!)
    pois é,não sei se terei a mesma/semelhante capacidade para li dar com tantos compromissos e dedicação,mais estudarei bastante p isso.

    Eu gosto de passar aqui... textos de tamanha qualidade e interessantes,bem escritos,cada palavrinha de maneira que... dá até uma certa inveja haha.
    Enfim,atualize sempre,que estarei comentando e vendo indicações e sugestões de texto e livros (em especial).

    Abraço.

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  2. Faço de Duda, minhas palavras, e ainda ressalto sem temer parecer "babão", que você é sem dúvidas a maior inspiração para nós, seus alunos, que optamos pelo curso de Letras.
    Pois o comprometimento e a responsabilidade em relação à Educação são quase palpáveis em seus discursos, exposições, olhar...
    Enfim, a senhora é fodástica mesmo, é desdobrável, é mulher, é uma exímia Mestra.

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